Cem anos passaram sobre o dia em que, neste mesmo local, foi proclamada a República.
O passar do tempo permite-nos hoje olhar para a Primeira República com serenidade e distanciamento, avaliando objectivamente o seu legado.
A revolução triunfante de 5 de Outubro de 1910 despertou um país adormecido. O regime anterior dava sinais de cansaço e mostrara-se incapaz de encontrar soluções viáveis para o impasse em que o País mergulhara. Assim o reconheceu, de algum modo, o chefe do governo caído a 5 de Outubro ao afirmar: «vi que a luta era impossível. A monarquia estava cercada de republicanos e indiferentes».
É a conjugação perversa dessas duas realidades que tantas vezes abala os alicerces de um regime: de um lado, a indiferença do povo; do outro, a incapacidade dos agentes políticos para encontrar soluções ajustadas às necessidades concretas do país.
Servir o país. Essa é a essência do patriotismo republicano. Por isso, diria que comemorar a República corresponde, acima de tudo, a saber servir Portugal.
Muito se exige dos que governam uma República democrática. Desde logo, é seu dever evitar que os cidadãos encarem com indiferença a acção dos agentes políticos ou se alheiem dos destinos do regime em que vivem. É fundamental que a classe política, pela força do exemplo, dê aos Portugueses motivos para acreditarem na sua República.
Ao comemorarmos o centenário da República, comemoramos uma nova cultura cívica para Portugal. No código genético do republicanismo encontra-se uma cultura marcada pela ética de serviço público, pela verdade e pela transparência no exercício da acção política. Um ideal de governo e de sociedade onde as pessoas ocupam cargos de relevo e posições de destaque pelo seu mérito e pelo seu valor, pelo contributo útil que podem dar ao país, e não por qualquer privilégio de nascimento ou pelas redes de influências onde se movem.
Portugueses,
Se o regime monárquico, como disse o seu último chefe de governo, suscitava a indiferença do povo, porque durou tão pouco tempo a Primeira República? Se tinham ideais tão elevados, porque se deixaram os políticos republicanos enredar em conflitos e divisões que acabaram por conduzir o país para uma ditadura?
A resposta terá de ser dada pelos historiadores. Mas é sabido que a instabilidade da Primeira República se ficou a dever, entre outros factores, à ausência de um elemento fundamental: a cultura da responsabilidade.
É pacífica a conclusão de que a República foi um regime atravessado por querelas e lutas que pouco diziam ao comum dos Portugueses. Lutas que eram perfeitamente secundárias face aos problemas que o País tinha de enfrentar: o analfabetismo e a pobreza, o atraso económico, as desigualdades, a dependência do exterior, a entrada na Grande Guerra, o desequilíbrio das contas públicas.
O essencial não é a discussão e a luta dos políticos. Há cem anos, como hoje, o essencial é a vida concreta das pessoas.
A responsabilidade constitui um dos alicerces básicos da vida colectiva de uma nação. Todos, sem excepção, somos chamados a agir com sentido de responsabilidade. Do mais humilde trabalhador ao empresário de maior projecção, dos jovens aos mais velhos, passando pelos que ocupam cargos públicos de relevo, cada um tem de actuar na sua vida pessoal, familiar e profissional de uma forma responsável.
A responsabilidade, obviamente, não é sinónimo de unanimidade. Num país livre, cada um pode escolher o seu caminho. Numa sociedade aberta e plural, há espaço para diversas concepções do mundo, para diferentes doutrinas e crenças, porque a República é um lugar de liberdade.
Ser responsável não significa abdicar da liberdade. Pelo contrário: só sendo responsáveis poderemos ser verdadeiramente livres.
Temos responsabilidades colectivas, enquanto Estado que convive com outros Estados e faz parte de organizações internacionais.
Enquanto cidadãos da República, temos deveres de cidadania para com os outros. Na exigência de civismo que devemos interiorizar, por exemplo, na circulação rodoviária, no respeito pela autoridade legítima ou na defesa do nosso património histórico.
No nosso tempo, sublinha-se cada vez mais a responsabilidade social das empresas. Uma empresa é uma união de esforços e de vontades. Aos agentes económicos é, por isso, exigido um particular cuidado na gestão das suas empresas, pois daí depende, em larga medida, o futuro do País e o futuro de muitos trabalhadores.
Os trabalhadores e os seus representantes, por sua vez, também devem partilhar desta atitude cívica republicana. Da sua responsabilidade depende uma desejável concertação com os empregadores, de modo a que sejam encontradas as melhores soluções para todos.
O requisito cívico da responsabilidade torna-se mais intenso quanto maior for a capacidade de intervenção de cada um na vida colectiva. Saliento as exigências especiais que recaem sobre os profissionais da comunicação social, por um lado, e sobre os titulares de cargos públicos, por outro.
A comunicação social desempenha um papel de relevo nas sociedades contemporâneas. Informa os cidadãos mas, além disso, forma a sua opinião. Para ser responsável, tem de ser livre. Mas, sendo livre e plural, tem o especial dever de informar com isenção, com objectividade e com rigor.
Contudo, é dos titulares de cargos públicos que mais se exige quanto a uma ética de responsabilidade.
Os titulares de cargos públicos, como é o caso dos agentes políticos, dos altos dirigentes ou dos magistrados, têm de pautar a sua acção por critérios muito rigorosos. Antes de mais, devem conhecer as realidades, estudar os assuntos com que têm de lidar, possuir um conhecimento adequado dos problemas. Além disso, devem estar conscientes de que são referências para a sociedade. O seus actos, e até as suas palavras, tanto podem gerar confiança e ânimo como podem contribuir para o descrédito das instituições.
A cultura republicana de responsabilidade exige rigor, bom senso, ponderação e contenção verbal, não se compadecendo com intervenções arrebatadas na praça pública, com palavras que são ditas sem se pensar nas consequências que têm para a dignidade das instituições.
O Presidente da República, em particular, deve manter um especial cuidado no uso da palavra. A coesão nacional, como referi na minha intervenção do passado dia 10 de Junho, é um dos bens mais preciosos que Portugal possui.
Um Presidente da República não pode alimentar divisões. A responsabilidade primordial de um Presidente da República é unir os Portugueses, em vez de impor a sua visão do mundo a uma parcela do País.
Da República centenária poderemos extrair vários ensinamentos. Entre eles, destaca-se um: não é da crispação que nascem as soluções para os problemas. Impõe-se, pois, que exista um compromisso político de coesão nacional.
Um compromisso firme e sério, através do qual as diversas forças partidárias, sem abandonarem as suas diferentes perspectivas, compreendam a gravidade do tempo presente e saibam estar à altura da confiança que o povo lhes concedeu.
Tudo farei para que prevaleça uma cultura de diálogo e de responsabilidade que permita alcançar os entendimentos necessários à resolução dos problemas do País.
Portugueses,
Neste ano de 2010, além do Centenário da República, comemoramos os 25 anos de adesão de Portugal às Comunidades Europeias.
O País mudou muito e mudou para melhor. Os Portugueses vivem hoje incomparavelmente melhor do que viviam há cem anos. E também vivem melhor do que antes de aderirmos às Comunidades Europeias.
Porque vivemos melhor, somos mais exigentes. É legítimo que o sejamos. Estamos insatisfeitos, o que não deve ser motivo para baixar os braços. Pelo contrário: se estamos insatisfeitos, temos de nos empenhar mais, de ser mais responsáveis nas nossas profissões, na defesa dos bens colectivos, nos deveres que temos para com a comunidade.
Somos hoje uma terra livre, um país que faz parte de pleno direito da comunidade internacional.
O balanço da República e o balanço da nossa participação no projecto europeu são claramente positivos. Soubemos fazer as escolhas certas nos momentos decisivos. Não esperámos que fossem outros a resolver os nossos problemas.
É esta a atitude que temos de cultivar no tempo presente. Um tempo adverso, sem dúvida, mas, por isso mesmo, uma altura que põe à prova a nossa vontade de vencer.
Estou certo de que, com a força inspiradora deste Centenário, iremos triunfar. Portugal sempre foi maior quanto maiores foram os desafios que teve de enfrentar. Com ânimo patriótico, com orgulho em sermos Portugueses, iremos conseguir!
Em nome de Portugal, celebremos os cem anos da República. A festa é do povo, porque a República é de todos.
Obrigado.
Aníbal Cavaco Silva
Presidente da República Portuguesa
Câmara Municipal de Lisboa, 5 de Outubro de 2010
O Presidente da República participou, em Lisboa, nas cerimónias comemorativas do centenário da Implantação da República, tendo hasteado a Bandeira Nacional na varanda da Câmara Municipal e proferido uma intervenção, após o que 100 crianças estamparam as suas mãos em gesso, num gesto intitulado "Impressões do Centenário", a que se seguiu o desfile das forças da GNR em parada.
À chegada à Praça do Município, o Presidente Aníbal Cavaco SIlva recebeu honras militares e assistiu a uma representação dramática de "Os Bigodes na Res Publica", pela Companhia de Teatro "O Bando".
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